A personalização da aprendizagem escolar, uma exigência da nova ecologia da aprendizagem

19 julho 2016
A ideia de personalização da aprendizagem está na base de múltiplas iniciativas e propostas de inovação e melhoria da educação.

Os esforços para ajustar a ação educativa às necessidades e interesses dos estudantes têm sido constantes na história da educação escolar. Estes esforços se manifestam com especial intensidade nos planejamentos e propostas pedagógicas, que situam o aprendiz no centro da ação educativa. Neste sentido, a ideia de personalização da aprendizagem ou de aprendizagem personalizada se conecta diretamente com a tradição das pedagogias centradas na criança ou no aprendiz, e com as abordagens e propostas construtivistas na educação. Contudo, seria um erro pensar que estamos diante de uma manifestação além desta tradição, e de uma exigência que se pode abordar satisfatoriamente com ajustes de maior ou menor amplitude e profundidade,  por exemplo, o currículo escolar, a formação do professorado, a organização e o funcionamento dos centros educativos ou o uso das tecnologias digitais da informação e da comunicação. Pelo contrário, trata-se de uma ideia que está agitando os fundamentos da educação formal em todos os seus níveis, e que é o germe de um processo de transformação em profundidade do qual apenas estamos começando a vislumbrar o alcance.

A ideia de personalização da aprendizagem, onipresente no pensamento educativo contemporâneo, está na base de múltiplas iniciativas e propostas de inovação e melhora da educação. Os fatores suscetíveis de explicar este fato são inúmeros e diversos.  Sem dúvida, uma análise global e profunda do fenômeno teria que prestar uma atenção especial à tendência a ajustar, adequar, em suma, a personalizar a informação, os produtos e os serviços em função dos interesses e necessidades individuais, expressão de uma visão de mundo e de um sistema de valores próprio das sociedades atuais e do pensamento pós-moderno. Mas é, sobretudo, no impacto que as mudanças sociais, econômicas e culturais, associadas ao novo cenário da sociedade da informação, tem tido na aprendizagem (Collins & Halverson, 2009; Tedesco, 2000; Thomas & Brown, 2011) que encontramos a explicação do protagonismo concedido à personalização da aprendizagem no pensamento educativo e em muitas iniciativas e propostas atuais de inovação e melhora educativa.

Estas mudanças, que afetam desde a economia, o comércio e o mercado de trabalho, passando pela mobilidade das pessoas e os movimentos migratórios, a produção e difusão da informação, a comunicação e as relações interpessoais, até as práticas e os hábitos culturais ou a hierarquia de valores, têm subvertido os parâmetros da aprendizagem humana vigentes ao largo dos últimos séculos. Estamos testemunhando uma mudança na ecologia da aprendizagem, entendida como “o conjunto de contextos aos quais se acessam, formados por configurações de atividades, recursos materiais e relações, presentes em espaços físicos ou virtuais que proporcionam oportunidades de aprender” (Barron, 2004, p. 6). A personalização da aprendizagem é ao mesmo tempo uma característica marcante e uma exigência da nova ecologia de aprendizagem própria da sociedade da informação. Antes de desenvolver este argumento, porém, é conveniente que façamos alguns apontamentos precisos em torno da personalização da aprendizagem, a fim de mostrar tanto sua vinculação como sua descontinuidade com as propostas de ensino diferenciado e a individualização da aprendizagem.

Individualização versus personalização da aprendizagem

Uma visão amplamente alargada da personalização da aprendizagem é a que a concebe como equivalente à aprendizagem individualizada, isto é, como o resultado de um ajuste da ação educativa às vicissitudes do processo de aprendizagem do aluno. Nesta perspectiva, a aprendizagem individualizada ou personalizada viria a ser o resultado do ensino diferenciado, ou seja, o tipo de aprendizagem que visa promover um ensino respeitoso com a diversidade de ritmos e caminhos do estudante em seu processo de aprendizagem. O problema do ensino diferenciado é como obter a informação sobre o processo de aprendizagem dos diferentes alunos presentes em classe e como processá-la em tempo real para ajustar em seguida a ação educativa a cada um deles. Este tem sido, tradicionalmente, o grande obstáculo para implementar as propostas de ensino diferenciado e a origem das críticas que frequentemente têm sido formuladas. Contudo, a capacidade das TIC para proporcionar e processar, em tempo real, uma grande quantidade de informações sobre a atividade dos alunos envolvidos em tarefas de aprendizagem, e mais concretamente o desenvolvimento espetacular das análises da aprendizagem na última década (Brown, 2011; Friesen, 2013) deram um novo impulso ao ensino diferenciado e favoreceram a identificação entre individualização e personalização da aprendizagem.

A finalidade última da personalização é que o aprendiz dê um sentido pessoal ao que aprende.

O pressuposto de que um ensino diferenciado dará lugar automaticamente a uma aprendizagem personalizada é, não obstante, altamente discutível. Em um ensino diferenciado, as decisões sobre o que aprender, para que, quando e como, são tomadas pelo professor a partir de um currículo estabelecido, ou outros agentes, no caso das plataformas online que utilizam algum tipo de aprendizagem analítica, e estão fora do alcance dos aprendizes. É como se quiséssemos “personalizar” o vestuário das pessoas, dizendo que peças têm que vestir, de qual tecido têm que ser feitas, que tamanhos devem ter, de que cor têm que ser, etc., em função de suas características pessoais (altura, peso, cor de cabelo, da pele, dos olhos…), do lugar onde vivem (orografia, clima, cidade, campo…) e da atividade que exercem (trabalho que implica movimento e esforço físico, trabalho em escritório, esportivo…), mas sem levar em conta seus gostos, suas preferências e o impacto que querem causar nas pessoas com as quais se relacionam. Podemos dizer que, procedendo desta maneira, estamos personalizando o vestuário? Certamente estaríamos ajustando o vestuário a algumas características das pessoas e deduzindo quais são suas necessidades derivadas do lugar onde vivem e do trabalho que fazem. No entanto, é bastante duvidoso que, procedendo deste modo, chegaremos a perceber e sentir nossa maneira de vestir como algo nosso, como algo realmente pessoal. A finalidade última da personalização é que o aprendiz dê um sentido pessoal ao que aprende. Poderíamos dizer, portanto, que enquanto a aprendizagem “individualizada” é o resultado de uma educação ou de um ensino diferenciado, a aprendizagem “personalizada” é a que tem um sentido pessoal para o aprendiz. Uma aprendizagem personalizada é a força individualizada, mas uma aprendizagem individualizada pode ser ou não personalizada.

A suposição do controle por parte do aluno, a consideração de sua voz e o reconhecimento da sua capacidade de decisão no e sobre o próprio processo de aprendizagem marcam o ponto de inflexão entre a individualização e a personalização da aprendizagem. Em ambas as abordagens está presente a ideia de ajustar a ação educativa às características, necessidades e interesses dos estudantes, mas somente no caso da personalização entende-se que, para conseguir o ajuste, é necessário reconhecer e respeitar a voz e o protagonismo dos aprendizes na direção e condução do processo. Junto a este ponto de inflexão cabe, no entanto, sinalizar igualmente uma certa continuidade entre individualização e personalização, fruto da junção de ambas as abordagens com a tradição pedagógica, que situa o aprendiz no centro da ação educativa. Esta continuidade é ainda reforçada pelo fato de que nem sempre, em todos os momentos e circunstâncias, é possível, ou mesmo desejável, que os aprendizes assumam plenamente a direção e condução de todos os aspectos envolvidos no processo de aprendizagem. Daí que as experiências e propostas de personalização de aprendizagem variam consideravelmente, de acordo com os aspectos ou componentes do processo de aprendizagem que os alunos controlam e sobre os quais podem decidir.

Em suma, a personalização da aprendizagem pode ser entendida como a mais recente manifestação de abordagens pedagógicas, que propõem ajustar as atividades de ensino e aprendizagem e a ação docente às características, necessidades e interesses dos alunos. É, no entanto, uma manifestação que representa um salto qualitativo em relação a manifestações anteriores deste tipo de abordagem. Em um modelo de aprendizagem personalizado, o aluno não é apenas alguém com características que devem ser levadas em conta e com necessidades de aprendizagem que devem ser satisfeitas; é, sobretudo, alguém com voz e com capacidade reconhecida e aceita para participar, a partir de suas características, aspirações e interesses, na identificação de seus objetivos de aprendizagem e na definição e controle do caminho para alcançá-los.

A personalização e a nova ecologia da aprendizagem

A ideia de aprendizagem personalizada tem inúmeras implicações para a prática educacional. Mas a sua importância e o que isso significa para a educação formal adquire uma nova dimensão, quando examinada a partir da perspectiva da nova ecologia da aprendizagem. A partir desta perspectiva, a personalização da aprendizagem se torna um desafio incontornável, que exige uma transformação profunda da educação formal. Três características da nova ecologia da aprendizagem (Coll, 2013a) parecem particularmente relevantes, nesse sentido.

  1. A primeira tem a ver com o fato de que a aprendizagem se produz, e se produzirá cada vez mais, “em toda a vida” (Banks e outros, 2007) –isto é, em uma variedade de contextos de atividade–, e não só “ao longo da vida” –isto é, em todos os períodos da vida. Sobretudo a partir das tecnologias digitais da informação e comunicação (TIC), mas não apenas relacionadas com estas tecnologias, surgiram novos contextos de atividades que oferecem às pessoas oportunidades, recursos e ferramentas para aprender. Estes contextos constituem verdadeiros nichos potenciais de aprendizagem e têm a particularidade, no caso dos que permitem criar as TIC, de poder operar, pelo menos em princípio, tanto dentro como fora das instituições de educação formal. Nos referimos a contextos de atividades como aqueles que fornecem, por exemplo, as redes sociais, os mundos ou ambientes virtuais, as comunidades virtuais de interesse, prática e aprendizagem ou jogos online. Também vale destacar que as TIC não são apenas a base do surgimento de novos nichos de aprendizagem, mas também desempenham um papel importante no fortalecimento de contextos tradicionais de atividades e de desenvolvimento –família, comunidade, instituições culturais e de lazer ou trabalho, etc.– como nichos potenciais de aprendizagem.
  2. A segunda característica, também vinculada à inserção e presença crescentes das TIC em praticamente todos os contextos de atividades das pessoas, tem a ver coma falta de uma separação nítida entre os diferentes espaços físicos e institucionais nos quais pode ocorrer a aprendizagem e, consequentemente, com a “porosidade” crescente entre esses espaços e a possibilidade de transitar facilmente entre eles. O conceito de “aprendizagem sem costuras” – seamless learning – refere-se à experiência de continuidade na aprendizagem, que as pessoas vivenciam fora dos lugares, situações, tempos e contextos institucionais nos quais aprendem (Sharples e outros, 2012). As tecnologias móveis e com conexão sem fio – laptops, smartphones, tablets e outros dispositivos eletrônicos – permitem que as “costuras” e “descontinuidades” entre as aprendizagens produzidas em diferentes lugares, momentos e contextos socioinstitucionais se desfoquem até o momento de desaparecer. Em outras palavras, estas tecnologias permitem pensar em um modelo de aprendizagem em que o aluno pode aprender o que lhe interessa, aprender em diferentes momentos e contextos de atividades, e pode fazê-lo mudando, com rapidez e facilidade, de um contexto a outro (Wong e Looi, 2011). Também permitem a construção de ambientes digitais pessoais de aprendizagem (Adell e Castañeda, 2010; Downes, 2015), que incorporam e integram recursos e ferramentas de diferentes naturezas e origens, ajustados aos interesses do aluno e suas preferências sobre o caminho a seguir.
  3. A terceira e última característica da nova ecologia da aprendizagem sobre a qual queremos chamar a atenção é a valorização das trajetórias individuais de aprendizagem como via de acesso para o conhecimento na sociedade da informação (Arnseth e Silseth, 2013; Barron, 2010). Na medida que as oportunidades, recursos e instrumentos de aprendizagem são diversificados, o foco de interesse se desloca a partir das experiências de aprendizagem e dos aprendizados que ocorrem em contextos de educação formal para experiências de aprendizagem e aprendizados que ocorrem nos diferentes contextos de atividades pelos quais transitamos. Em outras palavras, o foco se desloca para as trajetórias individuais de aprendizagem, entendidas como o conjunto de experiências de aprendizagem resultantes dos contextos de atividades a que temos acesso e nos oferecem oportunidades, recursos e instrumentos para aprender. Cabe enfatizar o caráter individual dessas trajetórias. Cada um de nós constrói sua trajetória de aprendizagem particular, como resultado não só dos contextos de atividades pelos quais transitamos, mas também, e sobretudo, como resultado das atividades em que participamos nestes contextos, e a forma como participamos delas.

Tomadas em conjunto, estas três características indicam que a personalização ocupa um lugar central na ecologia da aprendizagem, associada ao cenário da sociedade da informação e, ao mesmo tempo, que já é uma realidade refletida nas trajetórias individuais de aprendizagem. Uma realidade, no entanto, que no momento encontra sérias dificuldades para transpassar as portas das instituições educativas. A explicação da assimetria no peso e a importância da aprendizagem personalizada fora e dentro das instituições de educação formal encontra-se no fato de que os sistemas educativos existentes respondem essencialmente a uma visão de aprendizagem pouco ajustada ao cenário da sociedade da informação. A personalização da aprendizagem escolar, entendida como o reconhecimento da capacidade de decisão do estudante em e sobre o próprio processo de aprendizagem em função de seus interesses, opções e objetivos, tem um ajuste difícil na ecologia da aprendizagem, que suporta o modelo de escolarização universal e que concede, na educação escolar e formal, um protagonismo quase absoluto na formação das pessoas (Coll, 2013b).  Se quisermos que a personalização da aprendizagem não fique às portas das instituições educativas –e recordamos que, mais que um desejo ou uma proposta, é uma exigência– teremos que renunciar a esta ecologia, que responde a um cenário social, econômico e cultural que já não é o atual, e repensar os sistemas educativos a partir da ecologia da aprendizagem própria da sociedade da informação.


César Coll é Doutor em Psicologia e professor de Psicologia do Desenvolvimento e da Educação na Universidade de Barcelona. Promoveu e dirigiu trabalhos de investigação sobre as implicações pedagógicas da psicologia e epistemologia genética, da orientação e intervenção psicopedagógica e da concepção e desenvolvimento do currículo escolar. Também pesquisou a análise dos processos de interação em situações educativas e a avaliação da aprendizagem escolar e os usos das tecnologias TIC na educação.

Da mesma forma, desempenhou tarefas de assessoria e consultoria educacional em diversos países, especialmente em questões curriculares e psicopedagógicas.

Referências

  • Adell, J. & Castañeda, L. (2010). Los entornos personales de Aprendizaje (PLEs): una nueva manera de entender el aprendizaje. En R. Roig & M. Fiorucci (Eds.), Claves para la investigación en innovación y calidad educativas. La integración de las TIC y la interculturalidad en las aulas. Alcoy: Marfil.
  • Arnseth, H.Ch. & Silseth, K. (2013). Tracing learning and Identiy across Sites: Tensions, Connections and Transformations in and Between Everyday and Institucional Practices. En O. Erstad & J. Seftin-Green (Eds.), Identity, Community, and Learning Lives in the Digital Age (pp. 23-38). Cambridge: Cambridge University Press.
  • Banks, A. et. alt. (2007). Learning In and Out of School in Diverse Environments: Life-Long, Life-Wide, Life-Deep. The Learning in Informal and Formal Environments Center. University of Washington, Stanford University, and SRI International. En línia: https://life-slc.org/docs/Banks_etal-LIFE-Diversity-Report.pdf
  • Barron, B. (2004). Learning ecologies for technological fluency in a technology-rich community. Journal of Educational Computing Research, 31, 1–37.
  • Barron, B. (2010). Conceptualizing and Tracing Learning Pathways over Time and Setting. National Society for the Study of Education, 109(1), 113–127.
  • Brown, M. (2011). Learning Analytics: The coming third wave. En línia: https://www.educause.edu/library/resources/learning-analytics-coming-third-wave
  • Coll, C. (2013a). La educación formal en la nueva ecología del aprendizaje: tendencias, retos y agenda de investigación. En: J.L. Rodríguez Illera (Comp.),  Aprendizaje y Educación en la Sociedad Digital (pp. 156-170). Barcelona: Universitat de Barcelona. En línia: https://www.psyed.edu.es/archivos/grintie/AprendizajeEducacionSociedadDigital.pdf
  • Coll, C. (2013b). El currículo escolar en el marco de la nueva ecología del apredizaje. Aula de Innovación Educativa, 219, 31-36.
  • Collins, A. & Halverson, R. (2009). Rethinking Education in the Age of Technology: The Digital Revolution and Schooling in America. New York/London: Teachers College.
  • Downes, S. (2015). From MOOC to Personal Learning. In Revista FGV Online Year 5, number 1, 69-77. En línia: https://www.downes.ca/post/64556
  • Friesen, N. (2013). Learning Analytics: Readiness and Rewards. Canadian Journal of Learning and Technology. 39(4), 1-12.
  • Sharples, M., Mcandrew, P., Weller, M., Ferguson, R., Fitzgerald, E., Hirst, T., Mor, Y., Gaved, M. & Whitelock, D. (2012). Innovating Pedagogy. Exploring new forms of teaching, learning and assessment, to guide educators and policy makers. Open University. Innovation Report 1. En línia: https://www.open.ac.uk/blogs/innovating/
  • Tedesco, J. C. (2000). Educar en la Sociedad del conocimiento. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.
  • Thomas, D. & Brown, J. S. (2011). A new culture of learning. Cultivating the imagination for a world of constant change. Lexington: CreateSpace.
  • Wong, L-H. & Looi, Ch-K. (2011). What seems do we remove in mobile-assisted seamless learning? A critical review of the literature. Computers & Education, 57, 2364-2381.