Como atravessar este tempo que nos atravessa?

11 dezembro 2020

Aline Oliveira é educadora e organizadora da Virada Educação.

André Gravatá é poeta, educador, um dos idealizadores da Virada Educação e do Movimento Entusiasmo.

A pergunta a seguir provavelmente se moveu em você em algum momento nos últimos meses: Como atravessar este tempo que nos atravessa?

Este tempo de pandemia tem atravessado nosso corpo, nossa rotina, nossos planos. Tem sido um ano extremamente desafiador para as escolas. Quando falamos em escolas, estamos nos referindo a muita gente: famílias inteiras, educadoras e educadores, entre outras tantas pessoas. No centro de São Paulo, desde 2014 vem sendo realizada uma ação para fortalecer o vínculo entre algumas escolas de um mesmo território. Essa iniciativa começou com a Virada Educação, um acontecimento de vários dias em que as atividades são organizadas por diferentes escolas em parceria, e se desdobrou no Território Educativo das Travessias, que hoje é o nome dessa articulação que envolve quatro escolas públicas, além de outras que têm se aproximado mais e mais.

Ilustração de Rayssa Oliveira.

Em 2020, o Território Educativo das Travessias (hoje composto pelas escolas EMEI Armando de Arruda, EMEI Gabriel Prestes, EMEI Monteiro Lobato e EMEI Patrícia Galvão), em conjunto com nosso Coletivo Entusiasmo (formado por Aline Oliveira, André Gravatá e Rayssa Oliveira), além também da parceria com a EMEI Alceu Maynard, EMEI João Theodoro, entre outras instituições e coletivos, realizamos a 7ª edição da Virada Educação. Nosso tema: “Como atravessar este tempo que nos atravessa?”. Neste tenso ano de 2020, num tempo de pandemia, perdas, descaso político, medos coletivos e saudades agudas, foi importantíssimo acontecer a Virada Educação como um bem-vindo pretexto para realizar encontros em que nos escutamos, nos cuidamos, nos fortalecemos e gritamos juntos em defesa da escola pública.

De repente, diante da necessidade do distanciamento social, nós que consideramos as palavras “território” e “rua” tão preciosas no nosso vocabulário e na nossa prática, tivemos que procurar outros significados para elas. Nossa alegria é que, como já vivemos muitas experiências juntas e juntos, as pontes entre nós já estavam construídas, então só foi necessário descobrir maneiras de atravessar essas pontes sem sair de casa. Foi assim que realizamos várias reuniões virtuais – duas delas, por exemplo, com a presença do bailarino, educador e amigo Rubens Oliveira, que nos provocou com a dança a urgência de acordar o corpo. Em outros dos nossos encontros para preparar a Virada 2020, conversamos com parceiros, nos ouvimos atentamente para aproximar ideias e vontades.

De 21 a 24 de outubro, realizamos a Virada Educação 2020 por meio de várias atividades online. O maior desejo neste momento era escutar as vozes das crianças e insistir na defesa da escola pública. Toda a programação, que nasceu de um esforço coletivo, da dedicação de muitas educadoras e educadores, ficou registrada nas páginas do Facebook e Youtube da Virada Educação. Também aconteceram encontros restritos apenas às comunidades das escolas, também pela internet, em que as crianças e famílias puderam se reencontrar. Aconteceram até lives feitas por crianças e para crianças. Numa das rodas de conversa, o foco era contar as ações que vêm sendo costuradas coletivamente desde 2014.

Nesse bate-papo em que resgatamos essa história, em cada uma das falas das educadoras se destacava o sentimento de pertencer ao território, de realmente ter intimidade com o território. Claudia Rosa, diretora da EMEI Patrícia Galvão, relembrou a profundidade com que vivemos cada percurso nos tempos pré-pandemia: “Desde o momento que a criança sai da escola, ela vai se apropriando do percurso: no momento que ele começa a brincar e a chamar a atenção das pessoas que estão passando nas ruas, quando ela encontra os estabelecimentos comerciais e de moradia. A gente chama as nossas saídas, que não são passeios, de travessias, porque toda essa interação é de muito aprendizado e é transformadora”.

Já o Tiago Fernandes, coordenador da EMEI Armando de Arruda, contou sobre a mobilização que está acontecendo ao longo de todo o ano para arrecadar recursos e apoiar as famílias mais vulneráveis na região. Ele contou que mais de mil cestas já foram doadas, com comida, livros e outros materiais, numa ação chamada de Território da Solidariedade. Ele enxerga essa mobilização entre as escolas como parte da construção de um território educativo que pensa e age em coletivo.

Ilustração de Rayssa Oliveira.

Ações como a descrita pelo Tiago mostram como as pessoas que constroem a escola pública se dedicam imensamente no cuidado com seus alunos e alunas e suas famílias, se responsabilizando por questões que o poder público não tem respaldado com políticas realmente efetivas e afetivas. Ações como o Território Educativo das Travessias mostram como a escola pública é rica em potência, criadora de novas perspectivas. Em homenagem à escola pública, a professora Rebeca Castiglione, da EMEI Armando de Arruda, reuniu mais de setenta depoimentos de crianças, suas famílias e de educadoras e educadores das quatro escolas.

O vídeo se chama “Em Defesa da Escola Pública” e está disponível aqui: https://youtu.be/AqTOq3vv8NE.

Na abertura da Virada Educação 2020, contamos com a presença da Pilar Lacerda, educadora e diretora da Fundação SM, da Mariana Rosa, educadora e ativista, e da escritora e educadora Kiusam de Oliveira. A Pilar insistiu na importância de não nos percebermos sozinhas e sozinhos neste momento. Que é fundamental continuarmos criando redes de apoio. Nessa fala da Pilar víamos tanto a raiz do projeto da Virada quanto do Território das Travessias: apoiarmos uns aos outros, como uma rede consistente, criativa e atenta.

Numa das últimas atividades da Virada Educação 2020, com todos os cuidados de saúde necessários, algumas educadoras e parceiros se deslocaram em carros pela região das escolas, numa simbólica carreata poética que ecoava as memórias de tantos cortejos que nos aproximaram. E o abre-alas era um carro de som com gravações de vozes das crianças sendo compartilhadas com o território. Já que as crianças não podiam estar nas ruas, pelo menos a voz delas estava. Era um cortejo de vozes, de vida. Uma das crianças dizia assim: “Ô prô, meu feijãozinho já tá brotando ainda”. Era ela nos lembrando para onde a gente tem que olhar: para aquilo que insiste em nascer mesmo quanto o tempo é árido.

Mais uma Virada Educação aconteceu. E que venham outras. Que continuemos a defender a escola pública, a denunciar os desmontes, e ao mesmo tempo celebrar a potência que existe, que brota, que nos atravessa.