A ética do cuidado como paradigma educacional

18 janeiro 2021

Nas palavras de Bernardo Toro, “um paradigma é uma forma de ordenar a realidade para poder estar nela”. O acontecimento da pandemia não é só um aviso de que nosso modo de estar na realidade “normal” já é insustentável, é também um prelúdio de um futuro que emerge se formos capazes de nos conectar com ele. É a irrupção do novo. A interrupção de uma forma de nos entendermos e vivermos, em termos de crescimento econômico desmedido, hiperconsumo e aceleração histórica, é seguida não por um apagão, mas pela irrupção de um tempo emergente. É o momento do cuidado.

Isto requer um salto qualitativo como seres humanos. Como Einstein sugeriu, os problemas que temos gerado só podem ser resolvidos em um nível mais elevado de consciência. Este nível de consciência tem mais a ver com sabedoria do que com novos conhecimentos, com reconhecer o que é prioritário no decorrer da nossa vida e nos conectarmos com isso.

Não haverá mudança como civilização se não houver um salto espiritual pessoal em direção a uma autocompreensão da vida a partir dos cuidados que recebemos. É a própria vida e sua capacidade de torná-la habitável que nos pede para encontrar uma nova forma de ordenar a realidade e de nos instalarmos nela. É o que chamamos de mudança de paradigma.

Assim entramos em um novo tempo, sobre o qual não sabemos quase nada. O passado vai deixando de ser o combustível para nossas ações no futuro. A incerteza é o chão sobre o qual caminhamos e no qual escorregamos repetidamente. Chegou a hora de sustentar esse não saber e andarmos de mãos dadas. Sob os escombros da civilização que habitamos, encontramos goles de boa vida: a que nasce do cuidado.

O cuidado emerge como uma possibilidade de futuro no qual permitimos que surjam novas fertilidades, seja no âmbito pessoal, nas relações interpessoais, nas organizações, nos modelos educacionais ou na forma como vivemos como espécie no planeta.  Somente através do cuidado da vida poderemos colocar a pesquisa biomédica a serviço da saúde universal e não a busca de quem chega primeiro; somente através do cuidado de estranhos poderemos aceitar que juntos podemos nos salvar; somente através do cuidado dos demais poderemos preferir a cooperação à competitividade, a ajuda mútua a cada um por si, a solidariedade compassiva à lei do mais forte. Somente através do cuidado da vida poderemos educar na humanização do nosso mundo, na cura de tantas feridas abertas, no perdão e na reconciliação.

A irrupção do novo nos convida a reorganizar todas as peças do quebra-cabeça da nossa civilização. Mesmo se não tivermos uma capa para encaixar esse quebra-cabeças. Inauguramos o novo caminhando sem imagens, embora ancoremos no cuidado uma experiência antropológica, ética e espiritual que se torna o amanhecer do nosso caminho; nesse chiaroscuro que vai da noite para o dia e prefigura a luz que nos inundará, retomamos a vida que nos é dada. Prevemos alguns sinais que sugerem esta mudança de nível: o despertar espiritual (em uma ecumene que vai além das religiões), o despertar político (em termos de um movimento, além das instituições e partidos habituais) e o despertar cidadão (promovendo uma cidadania ecossocial, além da cidadania global da virada do século). Sem dúvida, é a política de interdependências que pode ativar pedagogicamente estes despertares para que não surjam como cogumelos isolados, mas como processos de emergência coletiva.

Provavelmente, nenhuma reforma educacional empreendeu a reforma da educação necessária.  As reformas educacionais têm reparado, remodelado e melhorado elementos que pertencem ao mesmo sistema. A ética do cuidado contém a semente de uma nova forma de enfrentar o ato educacional; configura-se como uma alavanca que ativa estruturas, conteúdo educacional, relações, modelos de aprendizagem e avaliação, metodologias, pedagogias e didática renovadas.  Por isso, a ética do cuidado nos obriga a voltar às questões educacionais clássicas: o que e como da educação. Temos dedicado muito tempo a elas nas últimas décadas. Entretanto, a ética do cuidado explora duas outras questões que raramente aparecem na agenda da política educacional:

  • O porquê da educação. São os propósitos educacionais, esses que normalmente encaramos como garantidos. Valorizamos a educação integral, apostamos nela porque nada humano nos é estranho. E também educamos para a inserção crítica em um tipo de sociedade plural, hospitaleira e justa. Não basta se preparar para a inserção no mercado de trabalho. As mudanças climáticas e a pandemia COVID-19 são sinais que nos alertam para uma educação que vá além da lógica do mercado e ilumine pessoas capazes de sentir e pensar sobre outras relações, outras organizações e outro mundo a ser construído.
  • O de onde da educação. Provavelmente a pergunta mais esquecida e menos respondida. Toca a fonte do nosso ser e do nosso fazer. De onde educamos? O Papa Francisco propõe uma verdadeira conversão ecológica, que envolve uma consciência de que os seres humanos não estão desconectados das criaturas e da vida. Articular a fonte da vida que faz do vínculo com o que é vivo uma referência reverencial fundamental é um desafio educacional inescapável para os próximos anos.

Cuidados e educação se irmanam na construção de outro mundo possível através de ações concretas que têm a ver com o cuidado com a palavra, cumprimentar os outros, pedir perdão, resolver pacificamente os conflitos, acompanhar o luto e curar as feridas, cuidar de si mesmo para poder cuidar ou se mobilizar diante das mudanças climáticas.   Porque o mundo não é, mas está sendo, Freire nos lembra.  E o cuidado também se vincula à indignação diante da injustiça e daquilo que nos faz gritar “não é justo!”. Cuidado e justiça não são excludentes; pelo contrário, são duas faces da mesma moeda que procura humanizar nosso mundo.

Estas e muitas outras coisas são abordadas no livro É o nosso momento.  O paradigma do cuidado como desafio educativo, publicado pela Fundação SM, após quatro anos de trabalho intensivo com educadores na Espanha e na América Latina. Um livro estruturado em quatro blocos e 16 capítulos que favorece a criação de itinerários de formação que respondam às necessidades concretas de qualquer escola.

Voltar ao passado é não ter futuro. Somente a esperança pode nos conduzir com sabedoria e humildade ao acontecimento radical que estamos vivenciando como humanidade. Ousemos dar o salto para o melhor de nossa humanidade, ainda por estrear. É o nosso momento.