ABP e justiça social. Como a Aprendizagem Baseada em Projetos (ABP) pode ajudar a mudar as pessoas que vivem neste mundo

23 maio 2020

Quando Freire nos dizia que “a educação não vai mudar o mundo, vai mudar as pessoas que mudarão o mundo”, possivelmente, se comprometia com o papel mais importante que a educação pode desempenhar: mudar o olhar das pessoas e convidá-las a agir de acordo com isso.

Era uma visão profundamente humanista a que Augusto Boal captava quando traduzia a pedagogia do oprimido em termos teatrais, dizendo que “todos os seres humanos são atores, porque atuam, e espectadores, porque observam”.

2020 vem sendo um ano que a natureza pôs diante dos olhos dos seres humanos a necessidade de olhar como são suas vidas e o que decidem fazer com elas e com o próprio planeta.

Sem nenhuma dúvida, a urgência da educação é a de dotar as pessoas com a capacidade de analisar criticamente a realidade posta à sua frente e arregaçar as mangas coletivamente para melhorá-la. Isto não pode ser feito a partir da escola-do-simulacro.

O que é a escola-do-simulacro?

Deixe-me descrever dois tipos de “problemas” que você pode propor a seus alunos em uma aula:

Vamos supor que um avião parte de Bruxelas para Madri a uma velocidade de X km/h e outro parte de Madri para Bruxelas a Y km/h. Em que momento vão se cruzar?

Vamos supor que um caminhão cheio de biscoitos belgas para serem consumidos aqui parte de Bruxelas e outro caminhão de rabanadas espanholas parte de Madri em direção a Bruxelas. Qual é o custo de energia e de emissão atmosférica de CO2 dessa operação comercial? Em que momento os caminhões vão se cruzar? O que você acha que os transportadores estão comentando? O que eles deveriam comentar? Por quê?

Tenho ouvido a primeira proposição nas escolas desde que eu mesmo era um estudante. A segunda é a que pode colocar o aluno na necessidade de lidar com conteúdos curriculares – matemática, linguagem, história, ciências naturais etc. – a fim de compreender a realidade em que vive e decidir o que fazer com ela. Ainda continuamos esperando que estes “problemas” presidam o ensino na maioria das escolas do mundo.

O currículo escolar reproduz obscenamente a injustiça social. Além disso, a avaliação é um elemento profundamente injusto, pois determina absolutamente os aprendizados que serão avaliados pelos estudantes como relevantes ou secundários [1].

A escola-do-simulacro é a que não se propõe tudo isso. A que reproduz irrefletidamente um modelo de desenvolvimento cada vez mais desigual. A que vira as costas para a realidade em que vivem 90% dos cidadãos do planeta pensando, irracionalmente, que os conteúdos que reproduzem em suas aulas, o modelo de avaliação ou a relação que estabelecem com os estudantes e com os demais membros da escola, atende a critérios de objetividade e rigor assépticos.

Como educar a partir da realidade?

Malaguzzi dizia que “somente é possível educar na realidade a partir da própria realidade”; tinha razão. O simulacro é um péssimo livro de texto. E é assim por dois motivos:

  • Porque situa o conteúdo do aprendizado longe da realidade do aprendiz.
  • Porque reproduz um cenário social, natural e humano que não existe na realidade, pois deixa de fora os elementos mais importantes sobre os quais é urgente que o estudante pense criticamente e em torno dos quais decida uma ação compromissada.

O aprendizado é um projeto ao qual os estudantes e as escolas e bairros em que vivem aderem, no qual o conteúdo deve servir, antes de tudo, para incitar o olhar para a realidade diante deles e decidir atuar sobre ela em termos de justiça social.

Projetos que têm três alvos, com Fraser [2], sobre os quais construir sociedades cada vez mais igualitárias nas quais vivam pessoas cada vez mais felizes.

  1. O primeiro são os projetos educacionais que consideram a redistribuição da riqueza tanto no nível macro quanto no mais próximo ao aluno. As desigualdades relacionadas ao acesso a bens necessários, os espaços naturais, o emprego, saúde, educação etc.
  2. O segundo alvo são aqueles projetos que se focam na necessidade de reconhecimento do outro. A diferença de gênero, cultura, crenças etc. como valor de crescimento interpessoal.
  3. O terceiro é a participação. O acesso à tomada de decisões, a que a voz de cada aluno seja escutada e que os processos de participação sejam reais.

Estes são os eixos que constituem um modelo de aprendizagem baseado em projetos reais e compromissados com a justiça social.

Pouco depois de ter escrito estas linhas pude ver um vídeo fantástico de Noam Chomsky, no contexto de confinamento pela COVID-19, explicando claramente a necessidade de fazer que os projetos educacionais construam experiências de aprendizagem ricas e que reúnam a capacidade de construir cidadãos competentes e compromissados [3]:

A justiça social sem dúvida tem a ver com a capacidade de observar a realidade nua. A ABP é o quadro didático que permite construir aventuras de aprendizagem nas quais os estudantes são levados a olhar para a realidade em que habitam e a agir sobre ela.

Viver a aventura da aprendizagem: história de alguns anos de educação

Há alguns anos que me dedico à formação de educadores e educadoras. A disciplinas que esses futuros profissionais devem cursar são variadas e, possivelmente, todas necessárias. No entanto, acreditei sempre que a formação ficava órfã se não fosse oferecida a eles a possibilidade de enriquecer o olhar e de atuar de forma real como educadores.

Para olhar e atuar, é necessário habitar a realidade e abandonar o simulacro e é a isso que venho me dedicando há anos nos projetos que proponho aos meus alunos. Isto foi criando uma rede interessante de escolas, iniciativas e pessoas que facilitou meu trabalho. Devo a todos meu muito obrigado.

Lembro de Chus Balo, diretor há alguns anos de uma pequena escola, que lutava em defesa da diversidade na sua instituição e com quem realizamos projetos tão interessantes quanto “a parede da diversidade” e, anos atrás, o festival de cinema de Iruña, que testemunhou projetos como o “gnro mjr”, que foram reconhecidos depois com prêmios de artes cênicas. Espaços de criação coletiva nas Escolas de Valores com minha querida amiga Esther Monleón que esteve mais de dez anos dedicando-se à arte, educação e criatividade como estratégias de aprendizagem em Málaga, Espanha. O Festival de arte, educação e ação social representou uma tentativa importante de encadear uma instituição inteira em uma aposta que pudesse proporcionar uma identidade compromissada com a mudança e não apenas com a reprodução de conteúdos anódinos. Conseguimos isso apenas em parte.

O Centro da mulher de Cabanillas, em Guadalajara, onde trabalhamos colaborativamente por um par de anos com educadores em formação. O Centro penitenciário de Valdemoro no qual pudemos desenvolver oficinas com jovens detentos acompanhados pela monitora ocupacional. E tantos outros…

Ao lado destes, várias dezenas de instituições de educação infantil, primária, secundária, profissionalizante, para adultos e universitárias para as quais pude levar grupos de educadores em formação e que desenvolveram projetos conjuntos com os quais nos nutrimos todos e todas. A lista seria infindável.

Nestes últimos dez anos, tive a sorte de ter podido desenvolver um projeto que se reitera continuamente e que leva grupos de docentes em formação ao Atlas. A ideia é que intervenham diretamente em escolas nas quais as condições educacionais, sanitárias e físicas sejam precárias. Também que habitem nessa realidade uma dezena de dias. O projeto “El pêndulo de Ifoulou” é o que está há mais tempo do que posso contar aqui e sobre o qual acaba de ser lançado um documentário emocionante realizado por ex-alunos do CIFP Jose Luís Garci de Alcobendas (Madri) que nos acompanharam há poucos anos [4].

Há algumas semanas regressamos da Índia com outro grupo de docentes em formação para trabalho em campo com garotos e garotas empobrecidos e excluídos. A casta dos “intocáveis”, que ainda existe na vida real, e habitam em condições desumanas em empresas de produção de tijolos que os exploram do nascer ao pôr-do-sol.

Esta necessidade de mudar o olhar e de provocar os docentes a agir de acordo com isso nos levou a promover diversas organizações para as quais o sistema de educação formal não parecia ter lugar. Associações como a Associação PSii ou, ultimamente, LABinE que se compromete com uma iniciativa que nos envolve: AS ESTÂNCIAS FORMATIVAS [5] que crescem do Marrocos à Índia, de Madri à Extremadura e viajam bastante mais longe nas próximas edições.

Também para acompanhar e promover o desenvolvimento de redes de instituições que se comprometem com a educação pela Justiça Social, como a rede de Escolas Irmanadas pela Justiça Social e com apoiar decididamente a criação e desenvolvimento da Cátedra UNESCO da Educação para a Justiça Social [6].

Os projetos (ABP) devem ser capazes de mudar o olhar dos alunos e convidá-los a atuar de acordo com a realidade. Para alcançar isso, é necessário trabalhar na própria realidade.


Juanjo Vergara e especialista em metodologias ativas (aprendizagem baseada em projetos). Pedagogo com especialização em “Organização e Direção de Centros Educacionais”. Especialista universitário em animação sociocultural e educação de adultos. Professor titular da especialidade Intervenção Sociocomunitária. Professor em licença na Comunidade de Madri. Mais informações

As coisas estavam mudando em Balancia, (…) Este maldito século disparatado!
Sony Labou Tansi

Saiba mais

Bibliografia:

  • Vergara, J. (2016): Aprendo porque quiero. El aprendizaje basado en proyectos (ABP), paso a paso. Madrid, BIE-S.M.
  • Vergara, J. (2018): Narrar el aprendizaje. La fuerza del relato en el aprendizaje basado en proyectos (ABP), Madrid, BI-S.M.
  • Vergara, J. y Copete, R. (2017): Herramientas para la educación formal y no-formal: el enfoque de proyectos. Madrid, Ministerio de Educación.
  • Varios (2017): Desing for change. Un movimiento para cambiar el mundo. Madrid, BIE-S.M.
  • Vergara, J. (2020): Un aula un proyecto. El ABP minuto a minuto. Madrid, Narcea [en prensa]

Red:

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